(de Augusto dos Anjos)
Poeta, venho visitar
o teu túmulo de ossos
(o que restou de ti
nessa existência às avessas).
Mas os teus versos,
inscritos na vida
como numa pedra tumular
do tempo eterno,
subsistiram aos vermes
que agora me espreitam
e até mesma a essa imensa
capacidade de esquecimento
que adquirimos como herança.
E é por isso que estou aqui,
e não para prestar homenagem
a uma pequena porção de terra
onde te esconderam na ilusão
de privar-nos de tua sábia
e triste companhia que amamos.
E através deles (os teus versos)
tu nos comunicaste o sentido do efêmero
e a maneira mais artística e correta
de desconsiderá-lo.
No silêncio sepulcral desta noite
abro a janela
e recebo a visita do demônio.
Juntos travamos um pequeno diálogo
acerca da destruição do mundo.
Depois percorremos os cemitérios
e os ninhos dos pássaros agourentos,
respiramos o hálito da morte
e compactuamos da miséria dos homens.
A noite era fria e indiferente
aos nossos propósitos de celebração.
Com dedos trêmulos cavamos o altar
de nosso macabro ritual.
Antes porém do sacrifício final
fomos resgatar a memória dos corpos
e garantir a permanência dos zumbis
sobre a face andrajosa do planeta.
Abrimos um caixão e uma brisa vaporosa,
que era ao mesmo tempo fúnebre e sensual,
despertou nossos instintos de espécie
e pouco depois e para sempre estava
consumado o ato lascivo e sagrado.
Chegamos depois ao altar fatídico,
e sob asquerosos protestos de ódio
à vida social e fútil dos vivos,
pegamos os punhais do sacrifício
e nos entregamos ao suplício eterno.
Vozes inaudíveis
golpeiam meu silêncio
de bicho entocado.
Sou perseguido por fantasmas
(desdobramentos de mim)
e os apascento
em precária unidade.
Sei da existência sem vida
e dos hálitos fétidos da morte
que povoam a noite dos túmulos.
Meu corpo é um mapa
onde se cruzam
os mais diversos caminhos
da imaginação fantástica.
Tenho todos os demônios
empalhados no quarto
e cada dia escolho um
para sustentar os pesadelos.
E sobre os meus despojos
carcomidos pelo tempo
e pelas mortes diárias
que impus a mim mesmo,
nascerá uma flor infernal
para devorar todos os homens.
A inquietação daquela noite
levou-me ao extremo de deixar a cama
em pleno delírio da febre sem causa
que me acometia desde há muito.
Nunca em meus transportes noturnos,
que eram então muitos frequentes,
eu havia experimentado essa ânsia de fuga
que só se compara à de um suicida na ponte.
Corri como que alucinado fantasma
até o porão da casa onde a umidade
havia impregnado as paredes de morte,
e peguei no baú o espelho quebrado.
A chuva era intensa e os relâmpagos
cortavam a estrada barrenta ao norte,
para a qual fui levado rumo ao destino
que o maldito espelho me reservara.
O cemitério estava deserto e escuro
mas havia um rumor quase que imperceptível
entre as catacumbas, abertas na véspera
para o desfecho insólito da profecia.
Então eu pude sentir os murmúrios
daqueles espectros putrefeitos pelo tempo,
cujos aspectos de decomposição física
acentuaram em mim a antiga náusea do futuro.
Ali, em meio à tempestade de abril,
o espelho quebrado que eu encontrara
junto aos aposentos da velha inquilina,
emitiu em reverberações estranhas e malignas
um brilho intenso que me cegou os olhos.
Agora sinto que a velha desfigurada se aproxima
e toca meu rosto com suas mãos de morte vazia.
Como num passe de hipnotismo ou subtração de raciocínio
sou conduzido para o rito anual de bruxaria.
Estou acordado
e não sonho,
mas a realidade
antecipada
me envolve.
A barba se me
desprende do rosto
fio-a-fio num frio
maior onde estou
me enregelando.
Tudo se dissolve
na aparência de ossos
de que fui formado,
e que é minha forma
mais resistente no mundo.
Mas a terra
(com seus vermes)
decompõe ao seu contato
todo o meu aprendizado
doloroso da vida.
E uma cova me absorvendo
transforma tudo o que fui
num triste resumo de pó
que um dia se chamou homem.
E que lhe deram um nome
(que tive), mas que a terra
aterra no tempo o traço
nominal dessa efemeridade.
Na umidade das pedras
que configuram o fim da rua,
eu deixo a cidade com suas luzes
e embrenho-me no seu depósito de restos
batido pelo silêncio e o desdém dos vivos.
Atravesso com passos rápidos
os últimos vestígios onde se respira
e concentra a massa indistinta de seres
que comem carne e habitam em casas para
gerar filhos que conferem um breve hiato
ao fim da espécie que apodrece sob o barro.
Minhas botas estalam nas pedras
como o casco de um animal inútil,
e os últimos postes de luz elétrica
escarnecem o meu propósito de deixá-los
para além de sua tarefa de apaziguar
os homens em seu conforto precário.
Olho para os lados para certificar-me
de que estou sozinho e então salto sobre
o muro de grades onde repousam os homens
que também comiam carne e geravam os filhos
de uma espécie da qual já não fazem parte.
Aqui foram deixados todos aqueles
que um dia não comeram carne e se tornaram inúteis.
E estão esquecidos aqui onde venho encontrá-los
com seus semblantes de velhos idiotas que acreditavam.
Percorro os túmulos que abrigam os mortos
e me detenho nos epitáfios deixados
por parentes que na cidade desprezam estes restos
só pela lembrança de um dia já os terem beijado
na volúpia da carne que agora fede.
Antes de deixar o cemitério
e os despojos de carne mal digerida
desses cadáveres abandonados,
eu toco com minhas mãos sem luvas
a massa liquefeita de seus corpos.
Depois volto para a cidade
e acaricio os rostos dos filhos
com o excremento fétido de seus pais,
para que eles ainda se sintam membros
de uma mesma adorável família putrefeita.
Numa noite de chuva fria
eu havia saído para as minhas
pesquisas quando o encontrei.
O vento ventava forte
nas vigas velhas do casarão
e meus cabelos e minhas mãos
se emplastavam de teias de aranha.
Existe uma imensa solidão em mim
que me transborda e me faz percorrer
roteiros de silêncio e sem volta.
Meu encontro com a criatura proscrita
foi algo meio profético e enigmático
e na noite infestada de miasmas um
vulto cinza me falou em meio a sombras:
“Nada me prende a este cemitério
a não ser as dificuldades reais
de se transpor um corpo da sepultura.
Não me agrada nada esta arquitetura
mas há em mim esta herança maldita
que persegue minha família como uma sina.
As grades do muro e do portão de saída
são um limite e uma prisão fictícia e
nada me diferencia de você a não ser
a natureza das nossas dificuldades.
E o que mais nos aproxima é o estado
permanente da solitária decomposição
de nossas almas”.
E finalmente disse, já estertorando:
“O único elemento que nos distingue
é o estado de conservação da madeira,
nas tábuas já podres do meu caixão
e nas envernizadas que te aguardam”.
Entre a vontade ferrenha do sonho
e o bloqueio efetivo do medo,
havia toda a extensão de uma noite
em que eu devia permanecer à porta
de sua casa velando o teu sono e
vendo a morte subterrânea do desejo.
Eu não estava sozinho nas ruas
de uma cidade quieta, havia sob os
meus pés toda uma horda de cadáveres
que se arrastavam feito minhocas e
viam com vivo interesse o desfecho
de minhas peripécias góticas.
Entre a fachada fechada de sua casa
e os portões de acesso ao cemitério,
havia todo um roteiro desesperado
que eu devia percorrer ao encalço de
minha lucidez no encosto das sacadas
ou seguir bêbado à procura de flores.
Eu não estava sorrindo nos bares
próximos a uma praça deserta, havia
solidão e pânico em meus propósitos
quando eu me dirigia ao cemitério e
com as mãos trêmulas sobre o canteiro
eu enchia de flores a bolsa de plástico.
Entre a calma indiferença do teu sono
e a obsessão doente da paixão, havia
todo um ritual de poesia que visava
alterar o descompasso entre o amor
caótico que eu sentia e o abismo
de silêncio e luz que te envolvia.
E daqui a alguns anos
(findo o mistério),
quando a vida estiver
muito longe e grande
for a fileira de sonhos,
tu então terás a certeza
de ter sido a primeira
a receber flores do cemitério.
A noite percorre meu corpo
sedento de mim,
que de tanto procurar-me se perdeu
e com ele me perdi.
Mas estamos aqui
nesta praça deserta
(que não é nossa)
às 4:30 horas.
Sei que antes de mim
outros corpos aqui estiveram
e os fui encontrar no cemitério
antes de vir pra cá.
E depois de mim
outros corpos de gente
estarão aqui sem saber que estivemos.
Nós, os mortos insepultos.
E então se estas gentes
quiserem a nossa companhia,
terão que ir durante a noite
visitar nossos leitos de morte.
Enquanto que na praça,
agora completamente deserta,
o dia amanhece nublado.
“Ontem, à meia-noite, estando junto
a uma igreja, lembrei-me de ter visto
um velho que levava às costas isto:
um caixão de defunto”.
Alphonsus de Guimaraens (1870-1921).
Depois de muitos anos,
tentando ainda me livrar
das marcas do passado
fui ao cemitério retirar
os ossos do meu amigo.
Lembro-me de ter deixado
uma pedra em formato de
concha, sob a qual estavam
os seus objetos pessoais e
toda a minha lembrança.
Era meia-noite no relógio
da igreja e um velho sentado
cochilava com a sua carcaça
de quem estava prestes a partir
e abandonar de vez a praça.
Antes, porém, seria necessário
àquele velho feio e deformado
atravessar a ponte de concreto
armado e alcançar o outro lado,
onde não havia nada além do pátio.
Surpreendi o velho em sua travessia
quando eu vinha vindo em sentido
contrário e voltando dos bares que
estavam situados na margem oposta,
onde a vida era só queixa e desamparo.
O homem trazia em suas costas
uma caixa de madeira envernizada
e cheia de alças de metal dourado,
semelhante aos caixões que eu via
expostos na porta da casa funerária.
E perguntei-lhe, já meio bêbado,
o que ele carregava nas costas
e se era pesado – disse-me então
e sem olhar para o meu lado,
que ia levando apenas o seu leito.
De súbito, ocorreu-me o fato
e a lembrança que me levara ali:
desenterrar os restos mortais
do meu amigo, depois de passados
alguns anos, conforme combinado.
Mas não sei se fui ao lugar errado:
o certo é que encontrei apenas,
na escuridão da casa dos mortos,
somente uma velha caixa de amianto
e pedaços de tubos galvanizados.
“porque a morte é a alfândega,
onde toda a vida orgânica há de
pagar um dia o último imposto!”
Cap. I – Da Doença
Compressas frias, banhos mornos, cataplasmas sinapizadas, injeções intravenosas de electrargol, injeções hipodérmicas de óleo canforado, de cafeína, de espertina, lavagens intestinais, laxativos e grande quantidade de poções e outros remédios internos.
Cap. II – Da Morte
Urna lisa, forrada com babado, envernizada, seis alças, com visor, véu, velas, encaminhamento da certidão de óbito, flores para ornamentação interna, livro de presença, paramentos religiosos, cinco anúncios na rádio local, translado de até 70 km e locomoção até a morada final.
Agradecimentos ao Augusto dos Anjos, à D. Ester Fialho e ao Pax Ervália que funciona em frente ao necrotério.
No cemitério de Perdões
Laura Alvarenga descansa.
Moça bonita de 19 anos,
falecida em 1920.
Sentada numa cadeira,
com um grande laço
de fita nos cabelos
e uns braços que talvez
nem mesmo Machado
sonharia descrever em
seus contos de Assis.
Laura Alvarenga
de 19 anos de idade
e seus olhos de Capitu.
Uma fisionomia pensativa
e meio triste de quem não
antevia a sua própria morte,
que chegaria tão cedo.
Na sua lápide está escrito:
“Saudade eterna de seus Paes
e irmãos”. 87 anos depois
eu contemplo sua fotografia
num livro de pesquisa e penso
que gostaria de tê-la conhecido.
O que sabemos nós da vida?
Eu estava de tocaia na praça em frente à sua casa
aí ela chegou de bicicleta e quando foi abrir a porta
eu ataquei, agarrando-a por trás e já sentindo o delírio
daquelas carnes macias que me foram negadas em vida.
Havia crianças por perto e então eu achei melhor
interromper o procedimento e levá-la para um lugar
escuro e deserto e então fomos a um velho cemitério
com ela protestando que preferia estar com uma amiga.
Mas eu havia morrido por causa dela e não era justo
eu não levar nada daquele amor que atravessou décadas
de sofrimento e dor causadas pela sua frieza e indiferença
Como quem prende um coração numa jaula suja e planejada.
Nunca era tarde e agora eu a tinha entre os meus braços
dilacerados pelos cortes de navalha que ela havia operado
enquanto exercia as funções de enfermeira-chefe do posto
médico mais próximo e que era uma espelunca dos diabos.
Consegui fugir das trevas do inferno e antes de executar
o intento planejado eu levei as suas filhas para a casa da avó
que morava numa aldeia vizinha de onde tudo havia começado
a cerca de 5 km de distância e já eram trinta e um anos passados.
Depois retirei o seu vestido jeans de zíper nas costas e com cuidado
fui explorando todos os espaços onde a vida fora afinal consumida
entre equívocos e intervalos enquanto que ela não dizia nada como
quem já esperava pelo pior e estava resignada com a morte próxima.
Mas eu estava cansado de conviver com o sangue e só queria o desfrute
daquele momento com ela viúva e única, como se eu fora um lobisomem
apaixonado pela manhã seguinte e então ficamos a noite inteira naquela
e acho que foram umas seis vezes até eu ficar satisfeito e engravidá-la.
Leio as notícias do dia e uma em especial me estarrece e diverte. Cemitério vertical. E enquanto leio a notícia que abaixo se transcreve, fico pensando que este é o último ingrediente que faltava para o nosso cardápio de misérias. Eis a notícia breve, tirada da internet: “A infraestrutura é de primeiro mundo. São 17 mil metros quadrados, divididos entre praça para shows de música gospel, cafeteria, loja de conveniência, capelas ecumênicas para velórios, climatizadas, elevadores modernos e garagem com capacidade para 150 veículos”. As vantagens são inúmeras, afirma o artigo, “além de projetar a cidade como a primeira a ter um cemitério vertical em Minas, ele trará benefícios para o meio ambiente, porque o chorume cadavérico não estará em contato com o solo e resolverá o problema de espaço, que atualmente tem sido o maior problema enfrentado pela administração pública. Além disso, geraria mais de 150 empregos diretos e indiretos”. Fecho a página e já me vejo nesse shopping entre ossadas, cervejas e praça de alimentação livre do chorume cadavérico. Como se sentir morto num lugar desses?
“Deem-me coroas de pano.
Deem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes”.
(Pedro Nava)
Eu estava dormindo quando o caixão chegou.
Acordei com luzes acesas, ruídos, vozes abafadas.
Levantei para ir ao banheiro e fui informado do velório.
A casa estava cheia de gente conhecida e estranhos.
Na sala o corpo já estava sendo velado e havia velas.
Um cheiro de morte impregnava o espaço intangível.
O defunto estava com as mãos cruzadas sobre o peito.
Flores cobriam todo seu corpo e o rosto estava lívido.
Os braços eram demasiados magros e cadavéricos.
Encostada numa parede jazia uma coroa roxa de latão
e a tampa enorme esperava o momento exato de cobrir
toda a vivência acumulada naquela vida que já não existia.
Nos próximos dias estávamos proibidos de ligar a televisão,
de ouvir música no velho rádio de madeira e a casa fechada.
Sobre o bolso da camisa foi costurada uma tarja de pano preto.
Chovia. E a música folk
me induzia a dedilhar um
passado de nostalgia. Eu
estava fotografando um
cemitério para selecionar
as fotos que entrariam na
versão final do livro fúnebre.
Anoitecia. E a pintura escura
me impelia a encerrar logo
o trabalho, faltando ainda
algumas covas próximas
ao muro da parte de cima,
mais ou menos a duas alas
antes de se chegar na escada.
Amanhecia. E eu alucinado,
pois havia reconhecido uma
catacumba de uma moça bonita,
falecida há pouco e eu não sabia:
quis aproveitar o momento único
na terra fofa que envolvia o corpo.
“Soluços, lágrimas, casa arrumada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões de água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e trespassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um...” (Machado de Assis, 1839-1908).
Um a um todos foram ao cemitério naquele dia. Levavam flores e sentimentos diversos. Acordei cedo, olhos ardendo e fui me postar ao lado de um túmulo deserto. Estava terrível e eu fui ficar ali, clandestino, a observar. Não houve enterros, embora tivesse mortos para o dia seguinte. Eu seria um deles, havia deliberado já. No bolso esquerdo a lista de débitos e no outro as fotografias de família. No fim da tarde começou a chuva e o barro e as flores e aquelas pessoas indo embora deixou em mim uma sensação de vazio. Voltei pra casa dizendo até logo àqueles que nada perceberam do seu dia e eram de todo indiferentes à minha presença prevista para amanhã, ou depois... (Milton Rezende, 1962- ?).