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Poemas Sequenciais

AUTORRETRATO I

Eu não sou somente

este rosto jovem

sou também

este corpo magro

estes pulmões doentes

este ser descrente.

Eu não sou somente

estas cicatrizes

na testa braço e perna

sou também

e principalmente

a lembrança delas.

Eu não sou somente

este sorriso

e estes olhos míopes

minha gente

sou também

humano e tenho

(como vocês)

cáries nos dentes.

Eu não sou somente

este sexo masculino

sou também

os momentos de carinho

e a ausência deles

quando se utiliza

o recurso das mãos

e da mente.

Eu não sou somente

o que como e o que bebo

sou também

o que excreto no banheiro.

Eu não sou somente

um amontoado de órgãos

sou também

a função de cada um deles

isoladamente.

Eu não sou somente

as palavras e os atos

sou também

(e antes)

os gestos que os/as

determinaram.

Eu não sou somente

o caminhar e o seu contrário

sou também

o percurso no escuro.

Eu não sou somente

poeta

seus estetas

sou também

funcionário público.

AUTORRETRATO II

Eu sou aquele

que teve que vender

a alma ao diabo

para se ver publicado.

Eu sou aquele

que teve que vomitar

o próprio sangue

para se fazer aceitável.

Eu sou aquele

que teve que buscar

entre os malditos

um convívio possível.

Eu sou aquele

que teve que sufocar

o hálito rebelde

para poder sobreviver.

Eu sou aquele

que teve que invocar

o sarcasmo irônico

para se vingar dos homens.

Eu sou aquele

que se vestiu de palhaço

e depois do espetáculo

matou toda a plateia.

Eu sou aquele

que amou sozinho

a impossibilidade

do amor compartilhado.

Eu sou aquele

que engoliu todos os sapos

e os digeriu com álcool.

Eu sou aquele

Fausto egocêntrico de Goethe

que mesmo vendendo a alma ao sucesso

ainda assim morreu inédito.


AUTORRETRATO III

Eu não sou apenas

este rosto envelhecendo

sou também

aquele corpo ainda magro

mas com os pulmões já curados

e um pouco menos descrente.

Eu não sou apenas

aquelas velhas cicatrizes

numa epiderme manchada

sou também

(ainda e sempre)

as circunstâncias

daquele passado.

Eu não sou apenas

aquele sorriso juvenil

disfarçado em lentes

de óculos para miopia

minha gente

sou também

a alegria mais escondida

e um grau bem diminuído

da acuidade visual, e quanto

às cáries que vocês tinham

eu não sei,

mas as minhas

eu obturei.

Eu não sou apenas

este sexo masculino

sou também

aquele menino que imaginou

culminâncias de carinho

e acabou meio sozinho

entre hiatos e ausências

tendo que recorrer às vezes

ao antigo método.

Eu não sou apenas

aquilo que comi e que bebi

ao longo desse muito tempo

sou também

os excessos, a parte excretada

e as consequências atuais

dos hábitos continuados.

Eu não sou apenas

aquele amontoado de órgãos

sou também

as cirurgias que tive de fazer

em alguns deles

isoladamente.

Eu não sou apenas

aquelas palavras e atos

e gestos da juventude

sou também

(e depois de tudo)

as circunstâncias

advindas.

Eu não sou apenas

as caminhadas e as pausas

que fazemos para avaliar

sou também

os descaminhos, os equívocos

e o mesmo percurso no escuro

(nisso eu não mudei nada).

Eu não sou apenas

funcionário público

seus merdas

sou também poeta.

AUTORRETRATO IV

Eu sou aquele

que teve que recolher

o corpo da multidão sorridente

para não ser pisoteado por suas botas.

Eu sou aquele

que teve que lamber

as próprias feridas

para poder seguir em frente.

Eu sou aquele

que teve que enfrentar

o convívio cotidiano com a morte

por não ser adaptável às normas.

Eu sou aquele

que teve que se libertar

da imaginação literária

para poder sobreviver.

Eu sou aquele

que teve que aturar

um sorriso sardônico

no ambiente de trabalho.

Eu sou aquele

que se escondeu do palco

bem na hora da apresentação

por não saber representar.

Eu sou aquele

que viveu pelo caminho

com a consciência embotada

em consequência das pancadas.

Eu sou aquele

que digeriu todos os sapos

na falta de melhor cardápio.

Eu sou aquele

fantasma embolorado do armário

que mesmo revestido das melhores intenções

ainda assim foi recusado.

CICLO I

A vida,

em todas as suas formas,

revela a sutileza de um mágico

que hipnotiza a todos

para que não vejam seus truques falhos.


Os homens,

em todas as suas crenças,

revelam a idiotice de um asno

que acredita em tudo

por não ser capaz de discernir o óbvio.


Os homens,

com todos os seus mágicos,

revelam a estupidez da espécie

que acredita na vida

como sendo o caminho para a salvação.


A vida,

com todas as suas armadilhas,

revela a esperteza de um camaleão

que dissimula aos homens

a sua completa inutilidade como veículo.

CICLO II

Quando a chuva neutralizar

a esperança das flores, no chão

uma semente irá se desenvolver

à imagem e perspectiva de tornar-se,

sintetizando em si todo o anseio dos homens

para que de seus ossos não se faça apenas

um cemitério, mas também um canteiro.

POÉTICA I

Há um grito

em mim

que não distingo

do grito

que ouço além

da minha surdez.


De noite adormeço

com o sopro da morte

que dissipa em nós

a certeza de que

este sono é trágico

e pode ser o último.


A cidade

não sabe das sombras

que gritam pelas ruas

sem perturbar o silêncio

da espécie adormecida.


O poeta

está sitiado

pelos seus fantasmas

e caminha na rua

com seus passos

de falso duende.


O poeta

chega ao cais deserto

e compreende que o seu ódio

é o instrumento legítimo

para igualar os homens

no que eles têm de precário.


O poeta escarnece

de si mesmo mas sabe

que há certas coisas

que não se aceita assim

impunemente e sem revolta.


Os homens estão todos presos

e o poema é apenas um grito

que sufoca em palavras o desespero

dessa nossa cela absurda.

POÉTICA II

A chuva fina

dissipa o sonho

de domar o verbo.

É estranho como

as palavras parecem

ter consciência

de si mesmas, e

se procuram e se

acham no poema.

É como se o poeta

fosse apenas um

coautor dos versos

que se escrevem e

dão uma função aos

escritores, que os

transcrevem.

POÉTICA III

Há muito tempo

que não escrevo

sequer um poema.

E ontem quando

eu estava vendo

uma entrevista

com um escritor

latino-americano,

pensei que era

chegada a hora

de eu quebrar o

silêncio e entrar

em comunhão

com as musas.

Aconteceu

no entanto

de elas estarem

em recesso comigo

devido ao motivo

de minha longa

ausência.

Então aprendi

a simples lição

de que a literatura

deve ser praticada

com a paixão jovem

e renovada de quem

não teme a morte

e nem a desafia,

apenas tece o seu

canto de espera e

monotonia.

PÂNICO NA AVENIDA I

Somos pessoas cansadas

e imóveis à sombra de

um abrigo sem folhas,

e o que nos caracteriza

e ao mesmo tempo nos

diferencia das outras

espécies aprisionadas,

é a nossa dificuldade

quase absoluta em sermos

felizes -- como se

a felicidade fosse um

passaporte para a morte.

PÂNICO NA AVENIDA II

As situações de vida

em minha ex-cidade

são como fantasmas

no espelho nostálgico

da minha memória.


É o mesmo que ausente

percorrer um casarão

tombado pelo patrimônio

e tombar realmente, numa

queda surda e repleta

do pó da história.


Em minha antiga rua

havia ao menos rostos

antigos a andar na rua.


E eu era um deles

hoje sou incógnita

e não me reconheço

na paisagem insólita.


À noite o sono é vigília

nas figuras das paredes

do meu escritório.

Drummond, Beatles e Lula

fixam-me de suas molduras

enquanto eu sonho estar longe.


Fora isso a vida transcorre

inexorável rumo ao seu desfecho.

459 A

Abandono total

numa casa de 29 m2

com vista de fundo

para um bambuzal.

O piso era claro

antes de eu pisá-lo,

mas depois a vida

converteu-se em

desordem e acordei

deitado de costas

num corredor

do lado de fora,

com a chave na mão

esquerda coberta de

sangue e a fúria cega

de quem não se lembra

de nada.

141 A

Sequência final

numa casa de 24 m2

com vista de frente

para um beco lateral.

O piso era grosso

antes de eu assimilá-lo,

mas como a vida

permaneceu em

desalinho eu adormeci

deitado de lado e tombado

em lençóis queimados

no espaço entre as camas.

Com uma aliança invisível

na mão direita e um cheiro

forte de esgoto vindo do banheiro.

E pensar que havia promessas

veladas feitas a mim mesmo

no escuro de uma vida desfalcada.

Pinturas metálicas malfeitas

no fundo de um espelho manchado

e de brilho opaco.

A VIDA É REAL E DE VIÉS

Depois que estamos

mortos

a nossa voz soa

como uma profecia.


À medida que passa o tempo

eu me desprendo dos elementos

e minha vida fica perigosamente

suspensa por um fio em cima do

abismo mortal de afeição e fúria.


O nascimento dos nossos filhos

são o lenitivo natural e possível

e coincide inclusive com a perda

e o afastamento dos amigos.


O silêncio de nossas vidas

perturba-nos de tal forma

que nenhuma cidade abriga

o nosso exílio voluntário.


Contra a aspereza da vida

edificamos os nossos sonhos

em textura livre e literária,

e vou compondo versos básicos

enquanto aguardo a minha vez

de ser assassinado.

A VIDA É REAL E DE VIÉS II

o corpo já cansado e senil

é o que nos resta

ao longo do percurso descida.


ESTATÍSTICA

até este momento

(setembro de 2022)

eu já vi partir

sete pessoas queridas

entre brumas e escuro.


quantos mais eu perderei

até que chegue

(ou eu provoque)

a minha hora de sumir

entre baques e esquecimento?!

ESTATÍSTICA II

e ainda faltam

quarenta e dois poemas

para eu completar uma

resma.

HOME SWEET HOME

Pensei enumerar aqui

todos os meus endereços:

as ruas, as casas, os bairros

o sítio e as cidades mineiras.

Prédios, altos e baixos, áreas

de escape, espaços, córner neutro;

as lojas, os quintais, os bares

e todos os locais de trabalho

que eu frequentei sem estar ali.

Mas já não me lembrava de

muitos deles – andei tanto e

não saí do estágio em que nasci.

Prefixos de telefones, mapas,

placas de carro, janelas, chaves,

portas, armários, quartos fechados,

as camas e os colchões onde dormi.

Vivi a minha vida sempre assim:

entre quatro paredes pintadas

ora de verde, de branco, de rosa

e infinidades de cores e situações.

Nunca me encontrei em nenhum

desses lugares e o meu lar

não existe sequer em mim.

HOME SWEET HOME II

depois de enumerar

os endereços

onde estive, bairros,

casas, fazendas e

cidades mineiras,

prédios baixos,

sobrados, áreas

de estacionar, córner

de boxe, mercados,

terreiros, os botecos,

que eu frequentava

estando bêbado, que

já nem me lembrava

mais – viajei pouco

sem sair do lugar de

onde nasci, números

de telefone fixo, mapas

cartográficos, chassi de

veículos, basculantes,

chaveiros, tramelas,

guarda roupas, quartos

mofados, bicamas, colchões

velhos. vivi a existência

assim: entre adobes

pintados com tintas

feitas a partir do estrume

de bois de carro, esverde-

ados e tantos equívocos.

nunca estive em nenhum

destes lugares e a minha

casa nunca existia e era

um hospício lacrado.

ÓDIO

Ódio de tudo:

de ti, de

mim, da

sombra no

asfalto, das

conversas

dos vizinhos

comendo

churrasco e

arrotando

bobagens,

dos barulhos

no telhado,

da televisão

ligada em

programas

de auditório,

dos ruídos que

vem das ruas,

do ambiente

de trabalho, das

necessidades

fisiológicas dos

governantes, da

inteligência

pedindo

esmolas

aos agiotas,

dos restaurantes

abarrotados

(que raiva das

pessoas perfi-

ladas mastigando

qualquer carne),

ódio de tudo

e de todos,

neste momento

em que faço

uma análise

antes de deitar

o meu cansaço.

ÓDIO II

Tédio de tudo

de ti, de mim,

da escassez do

barro

das lâmpadas

de led

da poeira

e do asfalto

dos rádios

ligados em

horário político,

obrigatório

da Hora do Brasil

do Repórter Esso

do gesso que nos

une, dos

óculos, da

miopia,

da noite

insone

dos bêbados

deitados

da insensatez

dos corpos

na manhã

que surge

por entre

as frestas

da morte,

a dor

enorme

(“tédio com

T bem grande

pra você”)

dos editores

capitalistas

(que raiva

dos poetas

perfi-

lados

mendigando

publicidade)

as sombras

das futuras

gerações

da escada

do silêncio

e outras

tantas

ausências.

PROFECIA

Vinte anos

e um encontro

definitivo com

o mistério da vida.

Vinte anos

e uma descoberta

do previsto quando

de mim para mim

me vi assim,

cristalizado.

Vinte anos

e reunirei em

minha pessoa

(com uma calma

dos seres

inanimados) os

vários prismas

de um ser

multifacetado.

Vinte anos

e serei então

uno – serei

um tanto – serei

um nada,

eternamente.

PROFECIA II

Sessenta anos

e um desencontro

definitivo com

o mistério da morte

Sessenta anos

e uma descoberta

do previsto quando

de mim para mim

me vi assim

sepultado

Sessenta anos

e reunirei em

minha pessoa

(com uma calma

dos seres mumificados)

os vários prismas

de um ser

desengonçado

Sessenta anos

e serei então

uno – serei um tolo –

serei um merda,

eternamente.

PROFECIA III

Setenta anos

e em sonho

noturno

induzido

indicando a

data de morrer

Setenta anos

quando de mim

para mim, me vi

assim decomposto

Setenta anos

e unificarei

em minha pessoa

(com um desespero

dos seres suicidados)

os vários reflexos de

um ser avacalhado

Setenta anos

e serei então

uno, serei bagaço,

serei uma visagem

diuturnamente.

SOBREVIVENTE

a tua voz

vindo das

cavernas

dos meus

sonhos.

hoje faz

meio século

em que

eu estou

ao encalço

do amor

sempre

negado.

cheguei

agora

na ponta

da pedra

do poço:

ou eu

salto para

o voo da

morte ou

a ilusão

retoma o

seu ciclo

e amanhã

eu apareço

no local

de serviço.

SOBREVIVENTE II

como eu não morri

procurei propósitos

para tentar entender

o espelho do caos.


quatro meses em coma

induzido e nenhuma

lembrança do ocorrido

comigo, nesse período.


escapuli como um andarilho zumbi

correndo trôpego pelos corredores

do hospital com tubos e aparelhos do cti

onde eu estivera internado e desenganado.


no meio de tudo isso havia uma presença

a me guiar no escuro como um farol luminoso

e eu afundava em ondas elétricas de titânio

no mar revoltoso do amor e seu chamamento.

RÉQUIEM I

Estou hoje calado

como se houvesse

roubado o silêncio

dos mortos.


Estou hoje tranquilo

como se a calma

fosse um atributo

dos homens enfermos.


Estou hoje festivo

como se estivesse

numa festa, e lúcido,

como se a lucidez

fosse a própria festa.


Estou hoje vencido

como se soubesse a verdade

e sozinho vou indo mesmo

a uma festa, atendendo ao

convite dos mortos.

RÉQUIEM II

cérebro inchado

em recônditas gavetas,

minha cabeça não deixa

de doer. fui de mim

o meu maior inimigo.