Eu não sou somente
este rosto jovem
sou também
este corpo magro
estes pulmões doentes
este ser descrente.
Eu não sou somente
estas cicatrizes
na testa braço e perna
sou também
e principalmente
a lembrança delas.
Eu não sou somente
este sorriso
e estes olhos míopes
minha gente
sou também
humano e tenho
(como vocês)
cáries nos dentes.
Eu não sou somente
este sexo masculino
sou também
os momentos de carinho
e a ausência deles
quando se utiliza
o recurso das mãos
e da mente.
Eu não sou somente
o que como e o que bebo
sou também
o que excreto no banheiro.
Eu não sou somente
um amontoado de órgãos
sou também
a função de cada um deles
isoladamente.
Eu não sou somente
as palavras e os atos
sou também
(e antes)
os gestos que os/as
determinaram.
Eu não sou somente
o caminhar e o seu contrário
sou também
o percurso no escuro.
Eu não sou somente
poeta
seus estetas
sou também
funcionário público.
Eu sou aquele
que teve que vender
a alma ao diabo
para se ver publicado.
Eu sou aquele
que teve que vomitar
o próprio sangue
para se fazer aceitável.
Eu sou aquele
que teve que buscar
entre os malditos
um convívio possível.
Eu sou aquele
que teve que sufocar
o hálito rebelde
para poder sobreviver.
Eu sou aquele
que teve que invocar
o sarcasmo irônico
para se vingar dos homens.
Eu sou aquele
que se vestiu de palhaço
e depois do espetáculo
matou toda a plateia.
Eu sou aquele
que amou sozinho
a impossibilidade
do amor compartilhado.
Eu sou aquele
que engoliu todos os sapos
e os digeriu com álcool.
Eu sou aquele
Fausto egocêntrico de Goethe
que mesmo vendendo a alma ao sucesso
ainda assim morreu inédito.
Eu não sou apenas
este rosto envelhecendo
sou também
aquele corpo ainda magro
mas com os pulmões já curados
e um pouco menos descrente.
Eu não sou apenas
aquelas velhas cicatrizes
numa epiderme manchada
sou também
(ainda e sempre)
as circunstâncias
daquele passado.
Eu não sou apenas
aquele sorriso juvenil
disfarçado em lentes
de óculos para miopia
minha gente
sou também
a alegria mais escondida
e um grau bem diminuído
da acuidade visual, e quanto
às cáries que vocês tinham
eu não sei,
mas as minhas
eu obturei.
Eu não sou apenas
este sexo masculino
sou também
aquele menino que imaginou
culminâncias de carinho
e acabou meio sozinho
entre hiatos e ausências
tendo que recorrer às vezes
ao antigo método.
Eu não sou apenas
aquilo que comi e que bebi
ao longo desse muito tempo
sou também
os excessos, a parte excretada
e as consequências atuais
dos hábitos continuados.
Eu não sou apenas
aquele amontoado de órgãos
sou também
as cirurgias que tive de fazer
em alguns deles
isoladamente.
Eu não sou apenas
aquelas palavras e atos
e gestos da juventude
sou também
(e depois de tudo)
as circunstâncias
advindas.
Eu não sou apenas
as caminhadas e as pausas
que fazemos para avaliar
sou também
os descaminhos, os equívocos
e o mesmo percurso no escuro
(nisso eu não mudei nada).
Eu não sou apenas
funcionário público
seus merdas
sou também poeta.
Eu sou aquele
que teve que recolher
o corpo da multidão sorridente
para não ser pisoteado por suas botas.
Eu sou aquele
que teve que lamber
as próprias feridas
para poder seguir em frente.
Eu sou aquele
que teve que enfrentar
o convívio cotidiano com a morte
por não ser adaptável às normas.
Eu sou aquele
que teve que se libertar
da imaginação literária
para poder sobreviver.
Eu sou aquele
que teve que aturar
um sorriso sardônico
no ambiente de trabalho.
Eu sou aquele
que se escondeu do palco
bem na hora da apresentação
por não saber representar.
Eu sou aquele
que viveu pelo caminho
com a consciência embotada
em consequência das pancadas.
Eu sou aquele
que digeriu todos os sapos
na falta de melhor cardápio.
Eu sou aquele
fantasma embolorado do armário
que mesmo revestido das melhores intenções
ainda assim foi recusado.
A vida,
em todas as suas formas,
revela a sutileza de um mágico
que hipnotiza a todos
para que não vejam seus truques falhos.
Os homens,
em todas as suas crenças,
revelam a idiotice de um asno
que acredita em tudo
por não ser capaz de discernir o óbvio.
Os homens,
com todos os seus mágicos,
revelam a estupidez da espécie
que acredita na vida
como sendo o caminho para a salvação.
A vida,
com todas as suas armadilhas,
revela a esperteza de um camaleão
que dissimula aos homens
a sua completa inutilidade como veículo.
Quando a chuva neutralizar
a esperança das flores, no chão
uma semente irá se desenvolver
à imagem e perspectiva de tornar-se,
sintetizando em si todo o anseio dos homens
para que de seus ossos não se faça apenas
um cemitério, mas também um canteiro.
Há um grito
em mim
que não distingo
do grito
que ouço além
da minha surdez.
De noite adormeço
com o sopro da morte
que dissipa em nós
a certeza de que
este sono é trágico
e pode ser o último.
A cidade
não sabe das sombras
que gritam pelas ruas
sem perturbar o silêncio
da espécie adormecida.
O poeta
está sitiado
pelos seus fantasmas
e caminha na rua
com seus passos
de falso duende.
O poeta
chega ao cais deserto
e compreende que o seu ódio
é o instrumento legítimo
para igualar os homens
no que eles têm de precário.
O poeta escarnece
de si mesmo mas sabe
que há certas coisas
que não se aceita assim
impunemente e sem revolta.
Os homens estão todos presos
e o poema é apenas um grito
que sufoca em palavras o desespero
dessa nossa cela absurda.
A chuva fina
dissipa o sonho
de domar o verbo.
É estranho como
as palavras parecem
ter consciência
de si mesmas, e
se procuram e se
acham no poema.
É como se o poeta
fosse apenas um
coautor dos versos
que se escrevem e
dão uma função aos
escritores, que os
transcrevem.
Há muito tempo
que não escrevo
sequer um poema.
E ontem quando
eu estava vendo
uma entrevista
com um escritor
latino-americano,
pensei que era
chegada a hora
de eu quebrar o
silêncio e entrar
em comunhão
com as musas.
Aconteceu
no entanto
de elas estarem
em recesso comigo
devido ao motivo
de minha longa
ausência.
Então aprendi
a simples lição
de que a literatura
deve ser praticada
com a paixão jovem
e renovada de quem
não teme a morte
e nem a desafia,
apenas tece o seu
canto de espera e
monotonia.
Somos pessoas cansadas
e imóveis à sombra de
um abrigo sem folhas,
e o que nos caracteriza
e ao mesmo tempo nos
diferencia das outras
espécies aprisionadas,
é a nossa dificuldade
quase absoluta em sermos
felizes -- como se
a felicidade fosse um
passaporte para a morte.
As situações de vida
em minha ex-cidade
são como fantasmas
no espelho nostálgico
da minha memória.
É o mesmo que ausente
percorrer um casarão
tombado pelo patrimônio
e tombar realmente, numa
queda surda e repleta
do pó da história.
Em minha antiga rua
havia ao menos rostos
antigos a andar na rua.
E eu era um deles
hoje sou incógnita
e não me reconheço
na paisagem insólita.
À noite o sono é vigília
nas figuras das paredes
do meu escritório.
Drummond, Beatles e Lula
fixam-me de suas molduras
enquanto eu sonho estar longe.
Fora isso a vida transcorre
inexorável rumo ao seu desfecho.
Abandono total
numa casa de 29 m2
com vista de fundo
para um bambuzal.
O piso era claro
antes de eu pisá-lo,
mas depois a vida
converteu-se em
desordem e acordei
deitado de costas
num corredor
do lado de fora,
com a chave na mão
esquerda coberta de
sangue e a fúria cega
de quem não se lembra
de nada.
Sequência final
numa casa de 24 m2
com vista de frente
para um beco lateral.
O piso era grosso
antes de eu assimilá-lo,
mas como a vida
permaneceu em
desalinho eu adormeci
deitado de lado e tombado
em lençóis queimados
no espaço entre as camas.
Com uma aliança invisível
na mão direita e um cheiro
forte de esgoto vindo do banheiro.
E pensar que havia promessas
veladas feitas a mim mesmo
no escuro de uma vida desfalcada.
Pinturas metálicas malfeitas
no fundo de um espelho manchado
e de brilho opaco.
Depois que estamos
mortos
a nossa voz soa
como uma profecia.
À medida que passa o tempo
eu me desprendo dos elementos
e minha vida fica perigosamente
suspensa por um fio em cima do
abismo mortal de afeição e fúria.
O nascimento dos nossos filhos
são o lenitivo natural e possível
e coincide inclusive com a perda
e o afastamento dos amigos.
O silêncio de nossas vidas
perturba-nos de tal forma
que nenhuma cidade abriga
o nosso exílio voluntário.
Contra a aspereza da vida
edificamos os nossos sonhos
em textura livre e literária,
e vou compondo versos básicos
enquanto aguardo a minha vez
de ser assassinado.
o corpo já cansado e senil
é o que nos resta
ao longo do percurso descida.
até este momento
(setembro de 2022)
eu já vi partir
sete pessoas queridas
entre brumas e escuro.
quantos mais eu perderei
até que chegue
(ou eu provoque)
a minha hora de sumir
entre baques e esquecimento?!
e ainda faltam
quarenta e dois poemas
para eu completar uma
resma.
Pensei enumerar aqui
todos os meus endereços:
as ruas, as casas, os bairros
o sítio e as cidades mineiras.
Prédios, altos e baixos, áreas
de escape, espaços, córner neutro;
as lojas, os quintais, os bares
e todos os locais de trabalho
que eu frequentei sem estar ali.
Mas já não me lembrava de
muitos deles – andei tanto e
não saí do estágio em que nasci.
Prefixos de telefones, mapas,
placas de carro, janelas, chaves,
portas, armários, quartos fechados,
as camas e os colchões onde dormi.
Vivi a minha vida sempre assim:
entre quatro paredes pintadas
ora de verde, de branco, de rosa
e infinidades de cores e situações.
Nunca me encontrei em nenhum
desses lugares e o meu lar
não existe sequer em mim.
depois de enumerar
os endereços
onde estive, bairros,
casas, fazendas e
cidades mineiras,
prédios baixos,
sobrados, áreas
de estacionar, córner
de boxe, mercados,
terreiros, os botecos,
que eu frequentava
estando bêbado, que
já nem me lembrava
mais – viajei pouco
sem sair do lugar de
onde nasci, números
de telefone fixo, mapas
cartográficos, chassi de
veículos, basculantes,
chaveiros, tramelas,
guarda roupas, quartos
mofados, bicamas, colchões
velhos. vivi a existência
assim: entre adobes
pintados com tintas
feitas a partir do estrume
de bois de carro, esverde-
ados e tantos equívocos.
nunca estive em nenhum
destes lugares e a minha
casa nunca existia e era
um hospício lacrado.
Ódio de tudo:
de ti, de
mim, da
sombra no
asfalto, das
conversas
dos vizinhos
comendo
churrasco e
arrotando
bobagens,
dos barulhos
no telhado,
da televisão
ligada em
programas
de auditório,
dos ruídos que
vem das ruas,
do ambiente
de trabalho, das
necessidades
fisiológicas dos
governantes, da
inteligência
pedindo
esmolas
aos agiotas,
dos restaurantes
abarrotados
(que raiva das
pessoas perfi-
ladas mastigando
qualquer carne),
ódio de tudo
e de todos,
neste momento
em que faço
uma análise
antes de deitar
o meu cansaço.
Tédio de tudo
de ti, de mim,
da escassez do
barro
das lâmpadas
de led
da poeira
e do asfalto
dos rádios
ligados em
horário político,
obrigatório
da Hora do Brasil
do Repórter Esso
do gesso que nos
une, dos
óculos, da
miopia,
da noite
insone
dos bêbados
deitados
da insensatez
dos corpos
na manhã
que surge
por entre
as frestas
da morte,
a dor
enorme
(“tédio com
T bem grande
pra você”)
dos editores
capitalistas
(que raiva
dos poetas
perfi-
lados
mendigando
publicidade)
as sombras
das futuras
gerações
da escada
do silêncio
e outras
tantas
ausências.
Vinte anos
e um encontro
definitivo com
o mistério da vida.
Vinte anos
e uma descoberta
do previsto quando
de mim para mim
me vi assim,
cristalizado.
Vinte anos
e reunirei em
minha pessoa
(com uma calma
dos seres
inanimados) os
vários prismas
de um ser
multifacetado.
Vinte anos
e serei então
uno – serei
um tanto – serei
um nada,
eternamente.
Sessenta anos
e um desencontro
definitivo com
o mistério da morte
Sessenta anos
e uma descoberta
do previsto quando
de mim para mim
me vi assim
sepultado
Sessenta anos
e reunirei em
minha pessoa
(com uma calma
dos seres mumificados)
os vários prismas
de um ser
desengonçado
Sessenta anos
e serei então
uno – serei um tolo –
serei um merda,
eternamente.
Setenta anos
e em sonho
noturno
induzido
indicando a
data de morrer
Setenta anos
quando de mim
para mim, me vi
assim decomposto
Setenta anos
e unificarei
em minha pessoa
(com um desespero
dos seres suicidados)
os vários reflexos de
um ser avacalhado
Setenta anos
e serei então
uno, serei bagaço,
serei uma visagem
diuturnamente.
a tua voz
vindo das
cavernas
dos meus
sonhos.
hoje faz
meio século
em que
eu estou
ao encalço
do amor
sempre
negado.
cheguei
agora
na ponta
da pedra
do poço:
ou eu
salto para
o voo da
morte ou
a ilusão
retoma o
seu ciclo
e amanhã
eu apareço
no local
de serviço.
como eu não morri
procurei propósitos
para tentar entender
o espelho do caos.
quatro meses em coma
induzido e nenhuma
lembrança do ocorrido
comigo, nesse período.
escapuli como um andarilho zumbi
correndo trôpego pelos corredores
do hospital com tubos e aparelhos do cti
onde eu estivera internado e desenganado.
no meio de tudo isso havia uma presença
a me guiar no escuro como um farol luminoso
e eu afundava em ondas elétricas de titânio
no mar revoltoso do amor e seu chamamento.
Estou hoje calado
como se houvesse
roubado o silêncio
dos mortos.
Estou hoje tranquilo
como se a calma
fosse um atributo
dos homens enfermos.
Estou hoje festivo
como se estivesse
numa festa, e lúcido,
como se a lucidez
fosse a própria festa.
Estou hoje vencido
como se soubesse a verdade
e sozinho vou indo mesmo
a uma festa, atendendo ao
convite dos mortos.
cérebro inchado
em recônditas gavetas,
minha cabeça não deixa
de doer. fui de mim
o meu maior inimigo.