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Críticas Literárias

O FRATERNO VERSO: SOBRE A POESIA DE MILTON REZENDE

Anderson Pires da Silva | Juiz de Fora, 2 de novembro de 2014. 

Os poemas de Milton Rezende são uma dessas inesperadas descobertas que acontecem na vida, e como tantas coisas na vida, sua poesia se revela uma coisa à primeira vista e, depois, quando nos tornamos mais próximos, revelam outra natureza. Foi fundamental, para descobrir a segunda natureza da poesia de Milton, a leitura de Tempo de poesia: intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende, estudo de Maria José Rezende Campos, uma análise precisa e íntima dos poemas e do poeta.


Inventário de sombras foi o primeiro livro de poemas de Milton Rezende que eu li, e era o quinto publicado pelo autor. Eu fora ao evento de lançamento a convite de sua irmã, Maria José, minha aluna no curso Poesia brasileira: enfoques do Programa de Mestrado em Letras do Centro Ensino Superior de Juiz de Fora. Após comprar o exemplar, procurei um lugar do lado de fora para folhear o livro com um pouco mais de atenção, e logo o primeiro poema -“Situação”- me pegou. Os outros poemas, como “Árvores” e “O trabalho dos dias”, intensificaram a minha surpresa diante de um poeta de escrita tão refinada, familiar aos leitores da poesia moderna, mas ao mesmo tempo estranha aos leitores da atual poesia contemporânea.


No dia seguinte, ao encontrar com a Maria José na sala de aula, revelei: “Fiquei com a impressão de que o Milton escreve sobre o seu tempo do século XIX”. Percebo agora como essa frase não tinha o menor sentido, mas ela entendeu claramente, e completou: “Ah, então o senhor vai gostar de A sentinela em fuga e outras ausências”.


Os poemas de A sentinela em fuga confirmaram a impressão inicial: há nos versos de Milton Rezende um tom de desolação, às vezes uma morbidez, que o aproxima da poesia simbolista-decadentista (ou penumbrista), porém sem soar datado ou ultrapassado, são estranhamente contemporâneos.


Essa primeira natureza da poética miltoniana é revelada com muita acuidade intelectual por Maria José, nos capítulos “Milton Rezende e o processo de criação” e “Espectros do spleen em Milton Rezende”. A partir de uma apresentação panorâmica da presença fantasmática do Romantismo na poesia do século XX, por causa da “tendência ao subjetivismo e do individualismo evidenciado no uso da primeira pessoa”, a autora aproxima os poemas de Milton ao universo finisecular e soturno de Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos, para concluir: “Milton Rezende é um herdeiro da literatura ocidental produzida até agora. Seus poemas releem um tema caro ao romantismo, a morte. Sua paixão por cemitérios, velórios e ritos de morte é combinada à abordagem de temas contemporâneos e uma visão crítica da sociedade”.


A intertextualidade é uma práxis do poeta moderno, como reflete T.S. Eliot no fluente ensaio “Tradição e talento individual”, é um modo de o poeta atuar criticamente dentro do repertório da tradição, elaborando suas preferências e reelaborando os códigos poéticos tradicionais em uma dicção própria. Nesse sentido, Maria José argumenta, a modernidade do projeto poético de Milton reside em sua “autoconsciência reflexiva”, no qual a paródia intertextual de poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, potencializa sua crítica à modernidade e à “angústia existencial na sociedade de consumo”.


Nesse ponto, destaca-se o trabalho analítico de Maria José em localizar não só as influências presentes na escrita de Milton, mas principalmente em demonstrar, através de sua obra, o modus operandi da própria poesia moderna, na qual a paródia é uma forma crítica tanto para se incorporar a uma tradição consolidada quanto para atualizar determinados procedimentos formais. O make it new de Ezra Pound como princípio formal. No caso de Milton Rezende, um dos procedimentos atualizados é o recurso à heteronímia para explorar os limites da representação e da subjetividade do eu-poético após a modernidade. Logo é de capital interesse o capítulo “Heteronímia em Milton Rezende”.


Fernando Pessoa é uma presença forte na arquitetura poética de Milton, explicitada no poema “Pessoa”, dedicado a Alberto Caeiro, presente em Inventário de sombras. Porém, no mesmo volume, encontramos outros exemplos menos explícitos. Façamos uma comparação entre estes versos:


Há na rua uma árvore

cuja beleza consiste

apenas em existir e

estar ali, ao vento.

[...].

Esta árvore não diz nada

de coisa nenhuma. A metafísica

está no bêbado que lhe atribui

significados além do estar-ali.

[...]. (Milton Rezende)


 E estes:


Há metafísica bastante em não pensar em nada.

Que ideia tenho eu das cousas?

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério.

O único mistério é haver quem pense no mistério.
(Alberto Caeiro)

                                             

                                             

 Como podemos observar, o processo intertextual vai além da incorporação de procedimentos poéticos, envolve o compartilhamento de certa perspectiva sobre a existência, uma ênfase na inutilidade de uma atitude contemplativa no ritmo de vida apressado do nosso tempo. No caso de Milton, tal ênfase se realiza no final irônico do poema, quando o poeta volta “puto para casa” após um carro passar na rua arrancando as folhas da árvore.


 Esse senso de humor cáustico é a segunda natureza da poética de Milton Rezende. Mesmo tematizando questões como a condição do eu-lírico em um mundo totalmente desencantado, adotando muitas vezes uma atitude melancólica irônica, seu pessimismo nunca é da ordem do conformismo, antes é uma forma de nos despertar contras as formas de dessensibilização da vida.


 Eu não chegaria a essa conclusão sem o precioso estudo de Maria José, sem o seu olhar fraterno e sua inteligência generosa. Muito obrigado.


O PROCESSO POÉTICO DE MILTON REZENDE NA TRADIÇÃO LITERÁRIA OCIDENTAL

Nícea Helena Nogueira - Doutora e Mestre em Letras: Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho -UNESP
Professora da Faculdade de Letras - Universidade Federal de Juiz de Fora 

“Viemos de um sonho remoto
Onde algumas sombras pairam
Sobre a quietude das águas.”
Milton Rezende em O cotidiano em círculos

Uma das abordagens que considero mais interessantes no estudo da pesquisadora Maria José Rezende Campos, intitulado Tempo de poesia: intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende, é a evidência de uma tradição literária e sua importância para a produção de poesia de qualidade, que pode ser facilmente detectada no fazer literário desse poeta. Isso possibilita a apreciação do diálogo intertextual que Milton estabelece com os poetas que o precederam e desencadeia outras abordagens que derivam da análise dessa tradição, como os elencados no título do estudo.

O conceito de tradição literária foi magistralmente revisitado pelo poeta e crítico anglo-americano T. S. Eliot em seu ensaio “Tradição e talento individual” (1989). Para Eliot, a incorporação do passado literário, da tradição, como algo que depende de um sentido histórico, está ressaltada na individualidade de cada escritor, no que de melhor sua obra apresenta. A percepção da presença do passado induz o homem a não escrever apenas de acordo com sua geração e para esta, mas a partir do sentimento de que todas as obras da literatura universal têm uma existência simultânea. Isso poderia ser observado de forma mais precisa no período de plena maturidade do escritor.

Nos poemas de Milton Rezende, a riqueza e abundância de alusões a outras obras da literatura universal confirmam a presença de uma tradição literária em perspectiva diacrônica ao mesmo tempo que a sincrônica, isto é, entre seus pares. O diálogo desse poeta com outros escritores, clássicos e contemporâneos, confere à sua poesia vigor e força de expressão perceptíveis a cada verso.

A tradição literária, como entendida por Eliot, permite aos melhores poetas escrever com um “senso histórico” em seus ossos para, inteligentemente, perceber não apenas o valor do passado, mas, também, a sua presença. Essa percepção induz um homem a escrever em consonância profunda não só com sua própria geração, mas com um sentimento que toda a literatura do ocidente a partir de Homero e, dentro dessa a literatura de seu próprio país, possui uma existência simultânea e estabelece uma ordem simultânea. Como resultado, nenhum poeta ou artista tem seu completo significado sozinho. O seu significado, ou seja, a sua importância é a apreciação de sua relação com poetas e artistas que já morreram. É por essa razão que Eliot adverte os críticos literários: “vocês devem situá-lo, por comparação e contraste, entre os mortos” (1989, p. 39).

O ponto de vista de Eliot é que a obra literária de um artista não pode ser considerada isoladamente. Deve-se estabelecer uma relação para com a tradição que o precede e que sua própria poesia, desde que contenha certos critérios evidentes de grandeza e valor, por sua vez, perpetua e altera simultaneamente. O autor de “A terra devastada” argumenta que as obras consideradas monumentos literários possuem uma ordem ideal entre si que é modificada pela introdução da uma nova obra de arte entre elas. Essa ordem está completa antes da nova obra chegar, porque a ordem persiste depois da introdução da novidade. Dessa forma, a ordem existente deve ser ligeiramente alterada e, assim, as relações, proporções e valores de cada obra de arte são reajustados pelo novo em relação à ordem completa. Em resumo, conclui o crítico, o passado é alterado pelo presente tanto quanto o presente é direcionado pelo passado.

Quando Maria José indica, em seus capítulos sobre intertextualidade e heteronímia, a presença de outros poetas no processo de composição da poesia estudada, os leitores podem confirmar a existência da tradição literária a que Milton Rezende se filia. Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa são os monumentos literários existentes nas linhas do poeta de Ervália e que compõem a ordem alterada e enriquecida por seus versos.

 O estudo detalhado do diálogo intertextual também que Milton Rezende estabelece com esses monumentos da Literatura de Língua Portuguesa também é um dos pontos altos da pesquisa de Maria José. O termo intertextualidade, significando a interação textual que é produzida no interior de um texto, tornando o contexto parte do texto, foi cunhado por Julia Kristeva no final da década de 1960, desenvolvendo os conceitos de Tynianov que havia formulado a hipótese de que, todo texto literário, era uma rede de relacionamentos diferenciais interligados com textos literários preexistentes e com conjuntos de sinais extra literários. Nos seus estudos sobre Rabelais e Dostoievsky, Mikhail Bakhtin também abre o caminho para a intertextualidade com a teoria do dialogismo na tradição carnavalesca da literatura ocidental. A intertextualidade tornou-se uma das linhas de orientação de estudos literários e de literatura comparada onde se estuda a assimilação intertextual, a transformação e a transgressão, e onde a redescoberta dos textos pré-estruturados situa-se em um novo texto, transformado pelo condicionamento contextual ou por modificações inerentes aos processos de paródia e paráfrase, amplamente estudados por Maria José.

Para finalizar, considero o capítulo “A heteronímia em Milton Rezende” como a principal contribuição de Maria José Rezende Campos para a fortuna crítica do poeta e das investigações acadêmicas sobre poesia, cada vez mais raras em tempos de redes sociais, onde a narrativa poucas vezes cede lugar à expressão e análise do eu lírico. A estudiosa apresenta, com competência e clareza, essa importante e original conexão entre Fernando Pessoa e o autor de Inventário de sombras. É, em todo o livro, um dos grandes momentos em que percebemos o valor da poesia de Milton Rezende e o seu senso histórico, dentro da concepção de T. S. Eliot. Ao incorporar o passado literário, Milton permite que constatemos a sua individualidade, o que de melhor sua obra possui. A sua percepção do passado na alusão ao método criativo do poeta português faz com que Milton não escreva apenas para a sua geração, mas, sim, que seus temas possam ser revisitados e entendidos por muitas gerações ainda por vir. Isso confere a ele o sentimento de um artista da literatura universal, ratificando a sua plena maturidade como escritor.

REFERÊNCIAS
ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: ______. Ensaios. Tradução Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Art, 1989. p. 37-48.
MOI, T. (Ed.). The Kristeva reader. Oxford: Blackwell, 1986.
MORRIS, P. (Ed.). The Bakhtin reader: selected writings of Bakhtin, Medvedev, Voloshinov. Londres: Edward Arnold, 2009.